Informação profissional para a agricultura portuguesa

Agricultura prepara Era da digitalização

Emília Freire01/10/2020

Ricardo Braga explica-nos que a academia, os agricultores e o Estado estão a preparar uma Estratégia para a Digitalização da Agricultura Portuguesa, que permita uma generalização da Agricultura de Precisão. O professor salienta que o principal impulsionador da adoção da AP “é o 'mindset' do agricultor, a mentalidade, o espírito, a postura e a capacidade de gestão”. Um 'mindset' que fomos atestar com João Coimbra e Pedro Mogo. Pelo caminho, fomos também saber que projetos o TEC4AGRO-FOOD, do INESC TEC, está a desenvolver.

Quando se fala de Agricultura de Precisão em Portugal há dois nomes incontornáveis: Ricardo Braga, do lado da academia e João Coimbra, do lado da produção, que são reconhecidos como dos maiores especialistas nacionais na matéria. Claro que, felizmente, há mais pessoas de um e do outro lado, mas estes foram talvez os principais evangelizadores do setor, na expressão do próprio Ricardo Braga. Era, por isso, obrigatório a Agriterra falar com eles para este artigo sobre ‘o estado da AP no nosso país’.

Mas falámos também com André Sá, responsável pelo TEC4Agro-Food, a iniciativa do INESC TEC para o Agroalimentar e a Floresta, que tem vindo a desenvolver vários projetos de investigação aplicada em parceria com outras entidades e empresas do setor (Ver Caixa). E com um produtor, igualmente pioneiro na sua área: Pedro Mogo que, em 2009, se lançou na cultura do abacate no Algarve e que, por trabalhar na numa empresa que fornecia já alguns equipamentos de AP (a Hubel) começou, desde logo, a usar sondas de humidade, etc.

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Começando por Ricardo Braga, o professor do Instituto Superior de Agronomia assegura que não tem qualquer dúvida que “nos últimos 12 anos, a evolução é enorme”. E porquê 12 anos? Porque foi em 2008, com a crise financeira que devastou a economia toda menos o setor agrícola, que os agricultores despertaram para a Agricultura de Precisão. “Todos os dias havia projetos de jovens agricultores, houve um movimento de novos gestores de outras áreas para o nosso setor e começou o período de volatilização dos preços, nomeadamente do milho, que até aí estavam mais ou menos estáveis e por isso os agricultores começaram a perceber que tinham de fazer alguma coisa rapidamente para serem rentáveis e eficientes”, conta Ricardo Braga à Agriterra. “A partir dessa altura é que começou a haver uma adoção da AP e um interesse generalizado em todas as áreas até chegarmos ao momento atual – dou aqui agora o tal salto de 12 anos – em que há um grupo de trabalho no Gabinete de Planeamento e Políticas (GPP) [do Ministério da Agricultura] para preparar o Plano Estratégico da PAC e nomeadamente uma Estratégia para a Digitalização da Agricultura Portuguesa (com representantes da agricultura, da investigação e da distribuição), para definirmos como a nova PAC pode ter um contributo decisivo para a generalização da AP”.

Ricardo Braga, professor do Instituto Superior de Agronomia

Ricardo Braga, professor do Instituto Superior de Agronomia.

Incentivo para vencer ‘aversão ao risco’

O professor adianta que, ao contrário do que acontece, por exemplo, com a agricultura biológica ou de conservação em que é importante haver uma ajuda inicial à quebra de rendimento, no caso da Agricultura de Precisão, a lógica é diferente: “As vantagens estão lá, demonstramos que não é necessário fazer grandes investimentos, com abordagens a que chamo low tech, mas tem de haver um incentivo para ajudar os agricultores a vencer a natural ‘aversão ao risco’”. Ou seja, são as situações em que o agricultor já percebeu que a AP não é só para explorações de grandes dimensões, com muita maquinaria ou com grandes rendimentos, mas há sempre o medo da mudança, de ter de lidar com alta tecnologia.

“Tenho vindo sempre a dizer ao longo destes anos que a Agricultura de Precisão não é tanto acerca da tecnologia – de drones, tratores, etc. – mas mais de gerir informação, gerir dados, melhoria da eficiência das decisões”, afirma Ricardo Braga, explicando que “é algo que, muitas vezes não é palpável, que é um pouco virtual, mas muito real e impactante nas explorações agrícolas que é a tomada de decisão, o agricultor todos os dias toma dezenas de decisões, e a AP permite que o agricultor em vez de tomar decisões empíricas, baseadas em tradição ou em hábitos, possa tomar decisões baseadas em evidências”.

TEC4Agro-Food: investigação ao serviço do Agroalimentar e da floresta

Desde 2014 que o Instituto de Engenharia de Sistemas e Computadores, Tecnologia e Ciência (INESC TEC) decidiu criar iniciativas para responder aos principais desafios da sociedade e ao mesmo tempo integrando-as nas principais agendas de investigação e inovação nacionais, mas principalmente a nível europeu. “Claramente um dos principais desafios é no setor agroalimentar e florestal, foram então criadas estas iniciativas que o INESC designa de TEC4 para o Agro-Food, mas também para o Mar, a Energia, a Saúde e a Indústria”, explica André Sá à Agriterra responsável pela TEC4Agro-Food.

Desde aí, o INESC TEC reorganizou a sua estrutura interna contabilizando todos os investigadores e projetos em cada uma destas áreas e também identificando os melhores parceiros (onde hoje estão muitas entidades públicas e privadas do setor, que têm uma componente de investigação, bem como Centros de Competência e COLABs, entre outros), para encontrar soluções para o setor agroalimentar e floresta, bem como para os outros. “Mas atenção que o INESC não desenvolve produtos e serviços, apenas protótipos que depois poderão ser produzidos e comercializados por empresas do setor”, salienta o responsável.

O INESC TEC esteve presente na Agroglobal em 2016 (quando assinou um protocolo com o Instituto Nacional de Investigação Agraria e Veterinária – INIAV) e 2018 (tendo aí assinado um protocolo com a Herculano – Alfaias Agrícolas), começando a ter cada vez mais notoriedade no setor e participando hoje em inúmeras iniciativas e projetos.

“Nesta altura, estamos também a ter muito sucesso em termos de projetos europeus. Inicialmente foi necessário ‘semear’ muito (…), já nos consideram nos consórcios e inclusive e acabámos até de ver aprovado um projeto com a coordenação do INESC”, congratula-se André Sá.

O INESC TEC tem liderado projetos como o Biotecfor, para a valorização eficiente dos recursos florestais endógenos no Norte de Portugal e Galiza...

O INESC TEC tem liderado projetos como o Biotecfor, para a valorização eficiente dos recursos florestais endógenos no Norte de Portugal e Galiza.

Tomar decisões baseadas em evidências

O professor conta que faz habitualmente uma analogia com a atuação de um médico, que faz as suas prescrições, depois de pedir exames que lhe dão um determinado diagnóstico. “Ora, nós anteriormente não tínhamos meios para fazer esses diagnósticos de forma precisa mas agora temos, através de satélite, de sensores de condutividade elétrica do solo, de sondas de humidade, de monitores de produtividade das máquinas, que vão gerar os tais dados que através do nosso conhecimento agronómico vamos transformar esses dados em informação, informação em conhecimento e conhecimento em decisão”, diz o especialista, acrescentando: “O João Coimbra usa uma expressão muito interessante ao dizer que ‘mais do que financiar chapa é preciso financiar neurónios’”. Isto é, fazer uma reengenharia dos processos usados nas explorações, tirando partido da digitalização que está massificada e que impacta toda a nossa vida, “passando tudo isso para o setor agrícola”.

Consola do monitor de produtividade com condução automática por GPS. Autor: José Maria Terrón
Consola do monitor de produtividade com condução automática por GPS. Autor: José Maria Terrón.

Mas é também preciso formar o capital humano porque “temos de ter pessoas aptas a trabalhar no novo paradigma” e não é praticável cada agricultor ter na sua exploração um técnico para interpretar os dados etc. por isso o grupo de trabalho que está a preparar esta estratégia para a digitalização da agricultura considera que será fundamental o papel das Organizações de Produtores (OP), que, normalmente, “já têm técnicos de campo que apoiam os agricultores”.

Estação meteorológica
Estação meteorológica.

'Mindset' do agricultor é o principal fator

Para Ricardo Braga, o principal impulsionador da adoção da Agricultura de Precisão, mais que a dimensão espacial ou económica das explorações “é o 'mindset' do agricultor, a mentalidade, o espírito, a postura e a capacidade de gestão”. Por isso é que não é fácil encontrar medidas que estimulem essa mudança e não apenas financiem a compra de equipamento, alerta o professor. “Uma estratégia ganhadora parece ser a das explorações-piloto, ou seja identificar explorações que possam servir de exemplo e serem disseminadoras da mensagem, até porque esses agricultores têm uma credibilidade muito maior do que os investigadores junto dos seus pares e podem ver no terreno os resultados”.

Salientando que o ‘ponto de situação’ do setor face à AP é variável, congratula-se por haver “uma batalha que está ganha, que é a tomada de consciência de todo um setor – desde os distribuidores de máquinas, aos adubos e sementes, passando pelas organizações da produção, ao poder político em geral e ao Ministério em particular – de que a Agricultura de Precisão está já a ser uma ferramenta importante para os desafios do excesso da população e da sustentabilidade. Isto é: ajuda o agricultor a decidir no momento certo, no local certo, na quantidade certa, reduzindo impactos ambientais e custos e melhorando a produtividade”.

Sobre o estado da implementação da AP no terreno, uma das principais dificuldades “tem a ver com a falta de conectividade no nosso território” e, curiosamente, o nosso telefonema com Ricardo Braga (que andava no campo) ‘caiu’ precisamente nesta altura, “pelo que quem está no terreno a usar tratores cujos sistemas dependem da conexão, fica logo inviabilizado de usar esse tipo de tecnologia”, por isso a implantação no terreno é muito heterogénea.

Ricardo Braga adianta que “hoje temos uma clivagem grande em função do agricultor, da sua dimensão e da aversão ao risco; também em relação a culturas – há culturas onde a adoção é muito maior do que noutras, estando a vinha e o milho no topo”.

Os projetos

Falando então dos principais projetos da iniciativa TEC4Agro-Food está a desenvolver, André Sá destaca o Demeter, “o megaprojeto europeu para a digitalização da agricultura na Europa”, de Agricultura de Precisão Inteligente e que está enquadrado no Horizonte 2020, que pretende criar um setor agroalimentar europeu interoperável, orientado por dados, inovador e sustentável.

A Iniciativa desenvolveu já também o SmartFarming – uma ferramenta avançada para operacionalização da agricultura de precisão, com “capacidade de processar de forma inteligente e o mais autónoma possível, múltiplos e diversificados dados e conhecimento agrónomo e atuar, de forma precisa e eficiente, num conjunto específico de processos agrícolas” e que está em aplicação/teste no Esporão e na Herdade Maria da Guarda.

Em funcionamento está igualmente o Sistema de Fertilização Preciso e Inteligente que os investigadores desenvolveram para a Herculano.

Em fase de testes/protótipos estão o RoMoVi - Robô Modular e Cooperativo para Vinhas de Encosta, ou seja uma “plataforma robótica simultaneamente de baixo custo e extremamente modular e versátil para poder integrar os mais diversos tipos de payload, tanto sensores como atuadores”, explica o responsável.

E também o agROBOfood – um apoio orientado para o negócio do setor europeu da robótica e do agroalimentar, com, objetivo de criar uma rede de Hubs de Inovação Digital em Robótica.

André Sá quis destacar ainda o Biotecfor, um projeto de Bionegócios e Tecnologia para a valorização eficiente dos recursos florestais endógenos no Norte de Portugal e Galiza.

Robô Modular e Cooperativo para Vinhas de Encosta, apresentado em 2018 durante a Agroglobal
Robô Modular e Cooperativo para Vinhas de Encosta, apresentado em 2018 durante a Agroglobal.

Condução assistida tem maior sucesso

Mas ainda há outra clivagem que é a utilização/tecnologia propriamente dita, por exemplo podemos dizer que a condução assistida por GPS nos tratores é a tecnologia em que o sucesso da adoção é maior, é uma utilização completamente generalizada mesmo em tratores entrada de gama”. E porque é que esta tecnologia venceu a aversão ao risco, a dimensão económica das explorações e outras barreiras? “Porque é uma tecnologia muito simples e com um retorno económico muito evidente”, frisa Ricardo Braga.

Outra tecnologia de AP que o professor considera que também tem tido bastante sucesso é a utilização das imagens do Sentinel, um satélite europeu de acesso gratuito, cujas imagens “nos dão um índice de vegetação que é o índice NDVI, que é uma espécie de Raio-X, eu permite aos agricultores todas as semanas (quando as imagens estão disponíveis) fazer uma avaliação da performance das culturas, para ver se estão a realizar a fotossíntese de acordo com o esperado ou se há fatores de stress”, tem tido uma adoção muito grande em todas as culturas, “desde os cereais de inverno, ao milho, ao tomate, à vinha, ao olival e à fruticultura”.

Exemplo do layout da previsão semanal, de grande utilidade para o agricultor
Exemplo do layout da previsão semanal, de grande utilidade para o agricultor.

Ao nível da gestão de rega, as sondas de humidade no solo, VRT, etc. também têm tido sucesso, porque até foram estimulados pela medida do ‘uso eficiente da água’ do PDR. Aqui o retorno também é mais visível, com poupança de energia e de água, “ou se não há poupança, pelo menos, há maior eficiência, porque há mais produtividade: se conseguem mais quilos de tomate ou milho por unidade de água despendida”.

O especialista salienta que o que ainda está muito pouco disseminado, “e que é seguramente a ferramenta que irá trazer mais ganhos às explorações a prazo, são os sistemas informação de gestão espacial das culturas, que integram as condutividades elétricas, as imagens de satélite, as cartas de produtividade, etc. estes ‘cérebros’ são o que vão, no final disto tudo, gerar os grandes benefícios”. Há muito menos porque não é fácil de implementar, é preciso know-how, e porque os retornos não são imediatos e evidentes, salienta, frisando que “é um sistema que vem apoiar uma mudança de mentalidade de gestão”.

A dimensão de uma exploração pode justificar mais o uso destas tecnologias porque naturalmente há uma maior variabilidade espacial mas em explorações mais pequenas e com margens reduzidas também porque “quanto menor é a margem mais tem de se otimizar tudo para conseguir rentabilidade”.

Ricardo Braga lembra que muitas tecnologias de precisão são já usadas há muito na criação de bovinos de leite, sendo os animais alimentados de acordo com a sua produção, e também em estufas onde há controlo de temperatura e CO2, agora é uma questão de “transportar isso para o campo aberto porque agora temos tecnologias que o permitem”.

Empresas ou entidades relacionadas

Herculano - Alfaias Agrícolas, S.A.

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